quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A primeira morte que chorei

Assis Fernandes

Eu estava indo lá pro Jacinta Andrade para uma pauta de bairro. Sem água, sem energia... Eu que ando meio sem energia, mas eu gosto de matéria de bairro. As pessoas são mais gentis do que aquelas de terno e com as quais a gente conversa rapidinho pelos corredores dos lugares, como se eles fossem mesmo muito importantes e a gente precisasse "correr atrás" de verdade para conseguir uma declaraçãozinha, só pra constar. Fulaninho afirmou que sim. 

A avenida Presidente Kennedy me dá paz quando eu passo da altura da Dom Severino, porque fica bem calmo e me lembra a Zequinha Freire, com todas aquelas borracharias e gente sentada na calçada, e que é caminho pra minha casa. Já chegando no Zoobotânico, tem mais verde pelos cantos e uns caminhões carregados de um monte de coisa que eu nem sei o que é, crianças formam grupos caminhado para casa depois que saem da escola.

Algumas delas pararam. Eu parei o meu olhar que seguia o nada, recostada sobre o banco traseiro. Havia um animal deitado ali no canteiro central. Eu fiquei apreensiva. Ai, meu Deus, o que será? Será que ainda está vivo? Deve estar sofrendo. "Pare o carro ali na frente, por favor. Olha, tem alguma coisa ali". Era grande, pensei que era um cavalo, mas não tão grande assim. Desci, atravessei, cheguei ao canteiro. Era uma fêmea de... "Burro" e "Jumento" não nomeiam bem um bichinho daqueles. Mas é assim que chamam. Os olhos abertos. A barriga enorme. Havia uma vida ali dentro dela. "Foi um caminhão que pegou, ela se abaixou ali na avenida [apontando o dedinho magro e de unhas roídas] pra parir, e aí o caminhão foi e atropelou ela. A bichinha. Atropelou. Nem parou. Foi-se embora". 

A visão do animalzinho se embaçou diante dos meu olhos e eu comecei a fazer umas perguntas, só pra não pensar direito. Anotei tudo e notei um pouco além. Havia sangue ali, escorrendo um pouco de onde viria sua cria. Um homem vinha montado em um cavalo cor de caramelo. "Eita, a 'Buneca' morreu. O 'Lorim' nem sabe, tá trabalhando. Ele vai ficar triste. Eita. A 'Buneca' tava pra parir". Acho que ele falou com ele mesmo. O olhar dele para o bichinho fez, uma vez mais, a minha visão embaçar. Engatei mais algumas perguntas, distraí a ele e a mim. Ele foi embora, galopante, sob o sol de quase meio dia. Olhei mais uma vez. Desisti de tentar saber mais alguma coisa. Voltei pro carro. As crianças passaram e acenaram um "tchau" tímido. "Tchau", acenei. 

O carro partiu. O caminho seria longo, ainda. Novamente me recostei sobre o banco do carro e procurei fugir dos olhos do motorista que às vezes me vigiam pelo retrovisor. Assim as lágrimas poderiam correr livres... Nunca antes uma morte, em pauta, me havia feito chorar. Me senti mais humana, mais sensível, mais capaz de perceber a dor outro, ainda que o outro seja uma burrinha prenha e morta. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

De como estudantes baderneiros pararam Teresina

Há algum tempo acompanho as manifestações, de entidades de classe e movimentos estudantis, contra um possível aumento do valor da passagem dos ônibus em Teresina. Inicialmente, como estagiária de jornalismo/repórter, mas também como cidadã e usuária do transporte público da capital. 

Lembro que há mais de dois meses, umas 100 pessoas seguiam pelas ruas da capital até a Prefeitura Municipal de Teresina, realizando passeatas tranquilas e que, muitas vezes, sequer vinham a público por meio da mídia local. A luta incluía o pedido de auditoria (lembrem-se, há mais de dois meses) do transporte público, o que levaria à revisão da planilha utilizada oficialmente pela PMT na determinação do valor do passe. Vale dizer que as conversas realizadas com a prefeitura durante os (muitos) dias de protestos pacíficos, nunca levaram a um debate consistente na intenção de que uma avaliação justa do transporte fosse realizada. Na auditoria, seria possível notar as péssimas condições dos pontos de ônibus que, principalmente em uma cidade como Teresina, maltrata e, porque não dizer, é "vândala" com o usuário? Como, por exemplo, a quantidade de veículos que não atende satisfatoriamente a população, tendo em vista o tempo que esperamos nos pontos de ônibus (eu, particularmente, já esperei várias vezes por mais de 1h, em dias normais). A qualidade e a acessibilidade dos ônibus, que quantos cadeirantes já deixaram esperando nas paradas? O absurdo que é, em nossa cidade, que já cobrava caro quando o passe custava R$ 1,90, não haver integração entre as linhas de ônibus, que realizam percursos mal planejados; afinal, quantos estudantes, de quantos bairros da cidade, precisam pegar dois ônibus para chegar às Universidades públicas instaladas na capital (eu, particularmente, precisava pegar dois ônibus para ir pra Uespi e preciso pegar dois pra ir pra Ufpi, além dos dois pra voltar); isso sem contar as viagens extras, porque a minha vida não se resume a ir para a Universidade.

Estou citando exemplos particulares, mas imagino quantos outros problemas os 100 estudantes, que já se manifestavam pelas ruas de Teresina pedindo a revisão da planilha de custos, reforço, há mais de dois meses, poderiam apresentar para justificar a revolta com a possibilidade do aumento da passagem. Então, o prefeito de Teresina, Elmano Férrer (PTB), assina o decreto que determina o reajuste da passagem de ônibus, de R$ 1,90 para R$ 2,10, na quarta-feira (24), o qual é divulgado apenas na noite de sexta-feira (26). O que poderia ser convertido em um fim de semana que acalmaria os ânimos das pessoas que fazem parte das entidades que atuam em defesa do usuário do transporte público, se transformou em dois dias de intensa mobilização virtual, estudantil e trabalhista. Estava decidido: o gestor de Teresina e, porque não, Teresina inteira, ouviria os protestos.

Na manhã da segunda-feira (29), mais de 2 mil pessoas, absolutamente revoltadas com o aumento e, além disso, com a atitude da divulgação do decreto somente dois dias depois de realizada a assinatura; se reuniram no canteiro central da maior avenida da capital piauiense e debateram formas de atuação que, finalmente, seriam ouvidas. Eu volto a lembrar que sei que há mais de dois meses as tímidas manifestações aconteciam, porque elas foram minhas pautas quase semanais desde que comecei a estagiar como repórter, e as acompanhei sempre. Nessa primeira segunda-feira de protestos, muitos jovens sofreram a repressão da tropa de choque da PM piauiense e sentiram o ardor dos sprays de pimenta, a dor das balas de borracha e a força maior da tentativa de ter sua voz calada. Sim, sim, ações condenáveis foram realizadas. Eu, particularmente, não concordo com a depredação de ônibus e nem com a pichação de monumentos da cidade, mas acompanhei a manifestação desde o primeiro dia e sei que esses atos foram produzidos por pessoas que não fazem parte das entidades que estão encabeçando o movimento e se aproveitam da luta pra cometer, sim, atos de vandalismo. Isso é um fato. No entanto, o movimento não é um movimento de vandalismo. A luta não é uma luta violenta. A maioria dos grupos que hoje "lideram" os protestos, já atuam no movimento em defesa do transporte público há muito tempo. Aliás, muito mais que os dois meses que eu os acompanhei, mas estou expondo aqui minha visão pessoal sobre os fatos. 

Nessa tarde, seis jovens foram levados à central de flagrantes da PM, dois deles menores de idade. Foram liberados em seguida, a pedido dos outros manifestantes. Em vários portais jornalescos locais, o grupo já era considerado violento, agressivo e autor de atos de vandalismo. De acordo com vários outros veículos de comunicação da cidade, a atuação agressiva partia de todo o coletivo. No entanto, quem estava lá, sabe que essa não era a realidade. E então, pessoas que presenciaram 10 minutos das 10 horas de manifestação, ou que tiveram apenas acesso às imagens e falas convenientemente divulgadas por muitos veículos locais, se acharam suficientemente capazes de julgar os atos agressivos cometidos e, mais, todo o grupo de estudantes e servidores que foram às ruas protestar. No dia seguinte, os atos novamente começaram cedo e terminaram tarde, com o grupo tomando ruas e parando cruzamentos da Frei Serafim. E no dia seguinte. E no dia seguinte. A ação se expandiu da Frei Serafim para a PMT, Avenida Miguel Rosa, João XXIII, Nossa Senhora de Fátima, Ponte Juscelino Kubitschek, Estaiada, Praça da Bandeira, do Marquês, Ruas Lizandro e Arlindo Nogueira... Eu acompanhei as manifestações desde o primeiro dia, quase que inteiramente. Vi atos agressivos, mas vi também estudantes unidos cantando o hino nacional, vi manifestantes formando um enorme cordão humano na avenida Frei Serafim, vi o grupo coordenar o trânsito e liberar a passagem de ambulâncias, vi motoristas promovendo buzinaços em apoio à manifestação, vi passageiros de ônibus presos no trânsito aplaudindo o protesto do grupo, vi PMs apoiando a causa e sendo aplaudidos pelos estudantes, vi pessoas nas paradas de ônibus absolutamente extasiadas com a tomada de atitude por parte dos jovens teresinenses... Uma das falas que recolhi hoje, quando conversei com dezenas de pessoas que assistiam, nas paradas de ônibus da Frei Serafim, o início do quarto dia de protesto, dizia que "Finalmente agora a gente tem alguma esperança de mudar alguma coisa pela ação do povo. Já estava ficando tarde para esse pessoal novo tomar uma atitude e fazer valer a nossa cidadania, a nossa voz". 

Eu, particularmente, fico profundamente decepcionada que tantas pessoas, até muito esclarecidas e inteligentes, se deixem cegar por atitudes isoladas, e convenientemente amplificadas em determinadas mídias, nos protestos, e não consigam compreender a grandeza e a importância do que está acontecendo em Teresina. Há precedentes e ações "violentas" internacionais acontecendo simultaneamente e deixando claro que essa luta é válida e que, por mais agressivo que pareça, pode sim ser positivo de alguma forma. Esses dias serão históricos; essas fotografias e esses vídeos ficarão pra sempre na história dos movimentos estudantis e sociais da capital, tão subestimados até pouco tempo atrás; os dias que presenciamos ficarão eternamente registrados quando vier à tona os temas de mobilização virtual e cibercultura na capital; as palavras de ordem ecoarão por dias na cabeça de jovens, adultos e idosos; a desestabilização causada no sistema de segurança e transporte de Teresina por conta de "uns baderneiros" será arduamente discutida por gente inteligente e consciente do nosso estado. É possível unir as vozes e se fazer ouvir, sim. Eu percebo que todos esses dias poderiam ser traduzidos com a imagem de alguém que pede, desesperadamente, a palavra, dentro de um ambiente cheio de gente completamente apática. Quem não consegue ver, agora, dentro de um ônibus absolutamente lotado, às 13h, na avenida Frei Serafim, inúmeros semblantes cansados e completamente passivos diante daquela situação. O calor, a lotação, a qualidade... Finalmente chegou o momento em que gritaram: Ei! Acordem! Olhem a situação em que vocês estão e o quanto pagam por isso! A gente precisa fazer alguma coisa!

Infelizmente, foram necessárias atitudes incisivas para que esse grito fosse ouvido. É possível que, com intenções genuínas e sinceras da grande maioria, uma cidade inteira seja barrada/parada/estrangulada/paralisada, finalmente, para discutir uma questão que já é parte do nosso cotidiano há muito tempo e que nunca foi levada ao debate público como agora. Estamos aqui e queremos ser ouvidos. É possível.